O dia está cinzento ou sou eu? Escancarei a janela do quarto e o vento frio acaricia minhas pernas cansadas enquanto escrevo. O homem bateu a porta e, avexado, desceu os degraus da escada com a mesma pressa de quem vai ao encontro de ópio após uma brevíssima abstinência. Nem mesmo tentei impedi-lo. Seria em vão. Eu cá nada tenho que possa entorpecer os sentidos. Estou atenta e o dia parece cinza. Mas os pássaros cantam mesmo sem plateia. Eles cantam.
Publiquei mais um livro e agora estou vazia, vazia. Só a concepção e o processo de gerar me entusiasmam e me enchem de tesão pela vida. Parir é ruim. Uma sensação estranha de quem soltou algo no mundo e nunca mais o terá como antes. Será que a mulher sente isso quando dá a luz? Será que lança luz ao mundo e por dentro sente as trevas da incerteza? Ai medo que dá!
Parei com as sessões de terapia. Sei lá. A terapeuta vive em desamparo e em desespero de causa. Não confio em quem só me ouve à hora marcada e mediante prévio e pronto pagamento. Se quiser conversar mais um pouco serei interrompida porque deu a hora. Tolerância zero. Prefiro é escrever. Falar à máquina sem pausas, agendamentos e pagamentos.
O homem chegou agorinha mesmo, abriu a geladeira, colocou litros no congelador, aproximou-se e passou as mãos nas minhas pernas geladas de vento. Estou ouvindo água quente de chuveiro cair. Eu que trate de me esquentar. O céu está de um azul claro e límpido. Fechei a janela do quarto. Amanhã é outro dia.